Jorginho sofrera um acidente que o levara ao
hospital, ano passado. Ele jogava futebol na rua de frente a sua escola, em um
sábado de tarde, quando Zé Bento, dono do supermercado “Brasileiríssimo”, o
atropelou. O caso foi parar na justiça; os pais furiosos do menino esperavam
uma indenização, toda via a pena do réu foi branda: Custear o tratamento de
Jorginho e serviço comunitário – esta última pena fora revertida a uma cadeira
de rodas que seria entregue a alguém da comunidade, ideia do promotor.
Desde então, a direção da escola de Jorginho
(Escola Estadual de Ensino Fundamental Médio Professor Ferreira Lima) deixa,
com um aluno responsável, as chaves do ginásio poliesportivo para que os
meninos pudessem brincar (com segurança!) um pouco nos fins de semana. A
vice-diretora, dona Marisa, organizara uma grade de horários, estipulando o
horário que cada turma poderia usar a quadra. Nas primeiras semanas houve
confusões, mas depois se adequaram às novas regras.
A alegria da criançada foi grande quando
souberam que poderiam brincar no ginásio. Todos se comportaram e se reuniram
para criar uma grade de horários que se adequasse a todas as turmas. Os
monitores foram escolhidos após muita discussão e reflexão (comumente, os
eleitos eram os mais velhos ou fortes das salas), com exceção da turma a da
sexta série que teve o primeiro monitor eleito da escola, Jorginho. Sempre
alegre por ter sido escolhido, tamanha a honraria.
Numa tarde de sábado, uma turma vai
crescendo pouco a pouco conforme vão andando pelas tranquilas ruas de uma
cidadezinha de interior. Um a um, molecotes afoitos vão integrando a caravana
que segue sem parar. Barulho maior que a algazarra feita pelo grupo é a de uma
moto velha que passa por eles, soltando pipocos e uma fumaça escura pelo
escapamento.
As vestes eram parecidas: bermudas; camisas
sem mangas, já muito gastas e surradas; uns de sandálias, outros de tênis –
estando a maioria descalça.
Os moleques berravam, xingavam-se entre si,
enfim, eram crianças. Porém, o único que era bem tratado era Murilo, o dono da
bola.
A molecada chegou ao ginásio. Quem tem
relógio?
– Eu tenho! – Erguera-se Rapozinha. – Duas e
meia!
A turma da quinta série ainda ocupava a
quadra. Lucas se aproximou do juiz e disse:
– Podem parar. Estão tomando a nossa hora.
– Que hora? – Indagou o responsável da
quinta série.
– Que
hora? (tá se fazendo de doido?) A hora de vocês irem embora! Fora!
Trocaram alguns gritos, mas não demoraram. A
quadra estava livre.
A turma da sétima série tinha das 2h 30m
horas da tarde às 4h 30m de puro futsal.
As arquibancadas estavam cheias de garotas,
de diferentes idades, para assistir a partida. Algumas saiam, chegavam. Irmãs,
namoradas e simples amigas assistiam os jogos.
Raposinha era o responsável, portanto,
escolhia os capitães. Os eleitos da semana foram Vitor e Murilo que montavam
seus times. O time de Murilo era formado por Gegê, Igor, Bil Coxinha e
Josicleiton, os ‘sem camisa’. O time de Vitor era formado por Besinho, Lucas,
Coração e Peida Fogo.
Os que eram chamados por apelidos, por certo
tinham histórias singularíssimas que explicavam. Por exemplo: Gegê (Abraão) costumava
vestir camisas maiores que o corpo, o motivo era simples, usava as roupas
velhas do irmão mais velho. A mãe de Bil Coxinha (Emílio) tinha um fiteiro na
rua da frente que vendia coisas diversas, inclusive coxinhas. Besinho (Bernardo)
escrevia seu nome com letra minúscula, sempre, mesmo agora, com 13 anos.
Coração (Sérgio), criado pela tia, irmã mais nova da mãe, e não gostava que ele
saísse para brincar na rua; sempre que este saia, a tia advertia “tenha
cuidado, Coração”. Peida Fogo (Ivisson) no recreio da escola estava brincando
de pega-pega quando parou para amarrar os cadarços do sapato; ao se abaixar, as
calças se rasgaram e Igor, que estava ao seu lado, jura de pé junto que o
rasgão foi causado por uma flatulência violenta.
O jogo começou. Cada um assumiu sua posição.
Murilo e Vitor eram atacantes; Gegê e Besinho eram volantes; Igor e Lucas eram
os goleiros; Bil Coxinha, Josicleiton, Coração e Peida Fogo eram zagueiros.
Josicleiton olhou rapidamente para cima.
“tem meninas aqui”, pensou. Só viera por elas. Este, era moreno; seu rosto
denotava lerdeza e preguiça; quando raramente falava, dizia besteiras
inconcebíveis, gostava de se fazer de besta perguntando várias vezes o óbvio;
de 1m e 70 cm de altura; pesando uns 55 kg; os amigos da escola o ouviam.
No futebol ele era horrível, bastava pouco
tempo de jogo para perceberem que a figura que mal se mexia em campo era
inútil; girava o corpo tentando acompanhar com os olhos a bola, que seguia há
metros de distância. Nos instantes em que a bola estava em seus pés, chutava de
sem pensar; para quem? Para fora, qualquer lado. Nem avançar arriscava, chutava
sempre.
Quem teve a maior posse de bola da partida
foi Vitor. Magro; alto; da mesma idade que Josicleiton – igualmente moreno,
porém ligeiro e esperto. Marcou dois gols naquele dia.
O placar estava cinco para os de camisa e
três pros sem. Ao perceber que Josicleiton atrapalhava mais que ajudava, os sem
camisa desanimaram.
– Ei, Murilo. Vamos tirar o esse daí. –
Dissera Bil Coxinha.
– Pode não, assim o time fica incompleto. –
Dissuadira Vitor.
– Fica 'descompleto' mesmo. – Replicara
Murilo.
– Nada. Não fica certo. – Finalizara Vitor,
que corria para a zaga para evitar o avança de Coxinha.
Alcançara Bil, infelizmente chocaram-se os
corpos e os dois, caindo.
– Pênalti! – Anunciara Raposinha. O juiz do
jogo.
– É roubo! Isso é roubo! – Gritava Gegê,
aproximando-se de Raposinha.
– Roubo? Quem vai bater é o teu time, besta!
– Explicara o juiz.
Igor bateu o pênalti e marcou um gol.
A partida acabara. Eram 4h e 30m, rapazes que
marcaram essa hora ocupavam a quadra enquanto os meninos saiam. Cinco para os
com camisa e quatro para os sem. A grande revanche estava marcada para a semana
que vem.
Ainda nas arquibancadas, as garotas
permaneciam sentadas. Os garotos que jogaram a partida foram conversar com
elas, só Josicleiton permanecia distante.
– Ó, aquela ali tava olhando pra você
durante o jogo. – Indicara Vitor ao colega.
Ao perceber que olhavam em sua direção a
menina virou o rosto e direcionou sua atenção a outro ponto da quadra. Era uma
garota bonitinha, de grandes olhos negros, da idade dos meninos apresentados na
página anterior. Estava de saias jeans,
blusa com estampa florida, usava uma tiara branca com pequenas pedras que
imitavam pérolas e alpercatas.
– Você conhece? – Perguntara baixinho
Josicleiton.
– Nunca vi. Fala com ela.
Josicleiton hesitou.
– O que foi?
– Nada.
Dito isso, o garoto subiu até onde a menina
de tiara de pérolas estava sentada.
Pouco tempo depois, cerca de cinco minutos,
ele saia da quadra.
– Ei, qual é o nome dela? – Aproximara-se
Vitor.
– O nome? Não sei.
– E o que foi que vocês conversaram.
– Sobre o jogo.
– Que isso, volta lá! Fala direito com ela.
– Tá bom! Pára! Eu já conversei!
Vitor pegou no braço de Josicleiton e tentou
arrastá-lo de volta para dentro da quadra. No segundo passo, Vitor largou o
colega.
– O que tem de mais em conversar com a
menina?
– Eu chamei ela pra passear comigo, mas ela
estava esperando Wilker...
Ao perceber que o amigo na verdade fora
rejeitado, Vitor parou de insistir. Por um ínfimo instante, este sentiu pena de
Josicleiton que estava visivelmente constrangido. Conversaram um pouco. Depois, despediram-se.
***
No sábado seguinte, os já conhecidos garotos
combinaram ir para a panificadora Real a fim de lancharem após a tarde de jogo.
Enquanto o grupo de molecotes descia a rua
principal, dobrando a esquina da Praça da Liberdade, Vitor falou a Josicleiton:
– Lembra da menina da semana passada?
– Que tem ela? – Indagara baixinho, com medo
que os outros escutassem.
– Sei o nome, é Márcia.
– Hum...
– Sabe como eu descobri? – A voz de Vitor
tornava-se cada vez mais firme a cada sílaba.
Josicleiton não perguntara.
– Foi Andreza quem me disse. Andreza é a
irmã mais velha dela (Márcia). – Esta era uma colega de classe dos meninos.
– Sabe o que mais eu descobri? – Josicleiton
virara o rosto para desviar seus olhos dos de Vitor.
– Ela não esperava por Wilker coisa nenhuma!
– Esperava sim!
– Pra que mentir?
Outra vez Josicleiton se calou e virou o
rosto. Findou-se o diálogo.
Ao chegarem à padaria, todos dividiam os
gastos: dois reais por cabeça. Comprariam pães doces; pequenos bolos baetas;
leite achocolatado para uns, refrigerante para outros. Só um se impôs a pagar a
taxa imposta pela turma:
– Bora, Josicleiton! Poxa! – Tentara
convencer Raposinha, o mais persuasivo dentre eles.
– Tô sem dinheiro.
– Mentira. Mentira que eu vi seu pai te
dando uma nota de cinco! Fui eu quem te chamou na porta de casa. – Dissera
Besinho.
Josicleiton emudecera.
– Vamos, todo mundo tá contribuindo. Desse
jeito você fica sem lanchar! – Afirmara Coração.
– Ouvi histórias da pirangagem desse aí, só
faltava mesmo ver. – Murilo apontava energicamente, com raiva, em direção de
Josicleiton.
– Tá certo, eu pago, mas só tenho um real. O
resto pago depois. – Expusera a seguinte alternativa.
– Deixa disso e paga logo, oh! –
Impacientara-se Peida Fogo.
Nesse momento, ia passando algumas garotas.
Dentre elas, podia-se ver Márcia (estavam na outra calçada, do outro lado da
rua).
– Josicleiton, sabe quem está ali – Vitor
apontou em direção das meninas. – Se você não der o dinheiro, eu vou chamar!
Os outros ignoravam o significado da ameaça.
A expressão de Josicleiton era a mesma, inabalável, vazia.
– Ô Márcia!!! Mááárrciiaaa!!!
A garota olhou. Inocente, ia em direção dos
meninos que a chamavam.
Para surpresa de todos, Josicleiton cedeu.
– Pronto! Pronto!!! Olha aqui o dinheiro, só
não grite mais. – Entregara às pressas os dois reais.
Márcia chegou e perguntou “O que foi?”.
Vitor respondeu que Josicleiton queria falar com ela. Os meninos entenderam e
os deixaram a sós. O encabulamento de Márcia se igualava ao de Josicleiton. De
qualquer forma, o resto da tarde findara-se com uma empolgante conversa. Depois,
ela disse que ficava escuro e tinha de voltar para casa; ele a acompanhou até a
casa.
Os sábados seguintes continuavam sem nada de extraordinário naquela cidadezinha pacata:
Josicleiton corria atrás da bola na quadra de futsal; Márcia o assistia toda semana, a
única diferença eram os encontros desses dois namorados todos os sábados, no mesmo banco da Praça
da Liberdade.