sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O Bola Murcha

 


   Jorginho sofrera um acidente que o levara ao hospital, ano passado. Ele jogava futebol na rua de frente a sua escola, em um sábado de tarde, quando Zé Bento, dono do supermercado “Brasileiríssimo”, o atropelou. O caso foi parar na justiça; os pais furiosos do menino esperavam uma indenização, toda via a pena do réu foi branda: Custear o tratamento de Jorginho e serviço comunitário – esta última pena fora revertida a uma cadeira de rodas que seria entregue a alguém da comunidade, ideia do promotor.
   Desde então, a direção da escola de Jorginho (Escola Estadual de Ensino Fundamental Médio Professor Ferreira Lima) deixa, com um aluno responsável, as chaves do ginásio poliesportivo para que os meninos pudessem brincar (com segurança!) um pouco nos fins de semana. A vice-diretora, dona Marisa, organizara uma grade de horários, estipulando o horário que cada turma poderia usar a quadra. Nas primeiras semanas houve confusões, mas depois se adequaram às novas regras.
   A alegria da criançada foi grande quando souberam que poderiam brincar no ginásio. Todos se comportaram e se reuniram para criar uma grade de horários que se adequasse a todas as turmas. Os monitores foram escolhidos após muita discussão e reflexão (comumente, os eleitos eram os mais velhos ou fortes das salas), com exceção da turma a da sexta série que teve o primeiro monitor eleito da escola, Jorginho. Sempre alegre por ter sido escolhido, tamanha a honraria.

   Numa tarde de sábado, uma turma vai crescendo pouco a pouco conforme vão andando pelas tranquilas ruas de uma cidadezinha de interior. Um a um, molecotes afoitos vão integrando a caravana que segue sem parar. Barulho maior que a algazarra feita pelo grupo é a de uma moto velha que passa por eles, soltando pipocos e uma fumaça escura pelo escapamento.
   As vestes eram parecidas: bermudas; camisas sem mangas, já muito gastas e surradas; uns de sandálias, outros de tênis – estando a maioria descalça.
   Os moleques berravam, xingavam-se entre si, enfim, eram crianças. Porém, o único que era bem tratado era Murilo, o dono da bola.
   A molecada chegou ao ginásio. Quem tem relógio?
   – Eu tenho! – Erguera-se Rapozinha. – Duas e meia!
   A turma da quinta série ainda ocupava a quadra. Lucas se aproximou do juiz e disse:
   – Podem parar. Estão tomando a nossa hora.
   – Que hora? – Indagou o responsável da quinta série.
   – Que hora? (tá se fazendo de doido?) A hora de vocês irem embora! Fora!
   Trocaram alguns gritos, mas não demoraram. A quadra estava livre.
   A turma da sétima série tinha das 2h 30m horas da tarde às 4h 30m de puro futsal.
   As arquibancadas estavam cheias de garotas, de diferentes idades, para assistir a partida. Algumas saiam, chegavam. Irmãs, namoradas e simples amigas assistiam os jogos.
   Raposinha era o responsável, portanto, escolhia os capitães. Os eleitos da semana foram Vitor e Murilo que montavam seus times. O time de Murilo era formado por Gegê, Igor, Bil Coxinha e Josicleiton, os ‘sem camisa’. O time de Vitor era formado por Besinho, Lucas, Coração e Peida Fogo.
   Os que eram chamados por apelidos, por certo tinham histórias singularíssimas que explicavam. Por exemplo: Gegê (Abraão) costumava vestir camisas maiores que o corpo, o motivo era simples, usava as roupas velhas do irmão mais velho. A mãe de Bil Coxinha (Emílio) tinha um fiteiro na rua da frente que vendia coisas diversas, inclusive coxinhas. Besinho (Bernardo) escrevia seu nome com letra minúscula, sempre, mesmo agora, com 13 anos. Coração (Sérgio), criado pela tia, irmã mais nova da mãe, e não gostava que ele saísse para brincar na rua; sempre que este saia, a tia advertia “tenha cuidado, Coração”. Peida Fogo (Ivisson) no recreio da escola estava brincando de pega-pega quando parou para amarrar os cadarços do sapato; ao se abaixar, as calças se rasgaram e Igor, que estava ao seu lado, jura de pé junto que o rasgão foi causado por uma flatulência violenta.
   O jogo começou. Cada um assumiu sua posição. Murilo e Vitor eram atacantes; Gegê e Besinho eram volantes; Igor e Lucas eram os goleiros; Bil Coxinha, Josicleiton, Coração e Peida Fogo eram zagueiros.
   Josicleiton olhou rapidamente para cima. “tem meninas aqui”, pensou. Só viera por elas. Este, era moreno; seu rosto denotava lerdeza e preguiça; quando raramente falava, dizia besteiras inconcebíveis, gostava de se fazer de besta perguntando várias vezes o óbvio; de 1m e 70 cm de altura; pesando uns 55 kg; os amigos da escola o ouviam.
   No futebol ele era horrível, bastava pouco tempo de jogo para perceberem que a figura que mal se mexia em campo era inútil; girava o corpo tentando acompanhar com os olhos a bola, que seguia há metros de distância. Nos instantes em que a bola estava em seus pés, chutava de sem pensar; para quem? Para fora, qualquer lado. Nem avançar arriscava, chutava sempre.
   Quem teve a maior posse de bola da partida foi Vitor. Magro; alto; da mesma idade que Josicleiton – igualmente moreno, porém ligeiro e esperto. Marcou dois gols naquele dia.
   O placar estava cinco para os de camisa e três pros sem. Ao perceber que Josicleiton atrapalhava mais que ajudava, os sem camisa desanimaram.
   – Ei, Murilo. Vamos tirar o esse daí. – Dissera Bil Coxinha.
   – Pode não, assim o time fica incompleto. – Dissuadira Vitor.
   – Fica 'descompleto' mesmo. – Replicara Murilo.
   – Nada. Não fica certo. – Finalizara Vitor, que corria para a zaga para evitar o avança de Coxinha.
   Alcançara Bil, infelizmente chocaram-se os corpos e os dois, caindo.
   – Pênalti! – Anunciara Raposinha. O juiz do jogo.
   – É roubo! Isso é roubo! – Gritava Gegê, aproximando-se de Raposinha.
   – Roubo? Quem vai bater é o teu time, besta! – Explicara o juiz.
   Igor bateu o pênalti e marcou um gol.
   A partida acabara. Eram 4h e 30m, rapazes que marcaram essa hora ocupavam a quadra enquanto os meninos saiam. Cinco para os com camisa e quatro para os sem. A grande revanche estava marcada para a semana que vem.

   Ainda nas arquibancadas, as garotas permaneciam sentadas. Os garotos que jogaram a partida foram conversar com elas, só Josicleiton permanecia distante.
   – Ó, aquela ali tava olhando pra você durante o jogo. – Indicara Vitor ao colega.
   Ao perceber que olhavam em sua direção a menina virou o rosto e direcionou sua atenção a outro ponto da quadra. Era uma garota bonitinha, de grandes olhos negros, da idade dos meninos apresentados na página anterior. Estava de saias jeans, blusa com estampa florida, usava uma tiara branca com pequenas pedras que imitavam pérolas e alpercatas.
   – Você conhece? – Perguntara baixinho Josicleiton.
   – Nunca vi. Fala com ela.
   Josicleiton hesitou.
   – O que foi?
   – Nada.
   Dito isso, o garoto subiu até onde a menina de tiara de pérolas estava sentada.
   Pouco tempo depois, cerca de cinco minutos, ele saia da quadra.
   – Ei, qual é o nome dela? – Aproximara-se Vitor.
   – O nome? Não sei.
   – E o que foi que vocês conversaram.
   – Sobre o jogo.
   – Que isso, volta lá! Fala direito com ela.
   – Tá bom! Pára! Eu já conversei!
   Vitor pegou no braço de Josicleiton e tentou arrastá-lo de volta para dentro da quadra. No segundo passo, Vitor largou o colega.
   – O que tem de mais em conversar com a menina?
   – Eu chamei ela pra passear comigo, mas ela estava esperando Wilker...
   Ao perceber que o amigo na verdade fora rejeitado, Vitor parou de insistir. Por um ínfimo instante, este sentiu pena de Josicleiton que estava visivelmente constrangido.  Conversaram um pouco. Depois, despediram-se.


***


   No sábado seguinte, os já conhecidos garotos combinaram ir para a panificadora Real a fim de lancharem após a tarde de jogo.
   Enquanto o grupo de molecotes descia a rua principal, dobrando a esquina da Praça da Liberdade, Vitor falou a Josicleiton:
   – Lembra da menina da semana passada?
   – Que tem ela? – Indagara baixinho, com medo que os outros escutassem.
   – Sei o nome, é Márcia.
   – Hum...
   – Sabe como eu descobri? – A voz de Vitor tornava-se cada vez mais firme a cada sílaba.
   Josicleiton não perguntara.
   – Foi Andreza quem me disse. Andreza é a irmã mais velha dela (Márcia). – Esta era uma colega de classe dos meninos.
   – Sabe o que mais eu descobri? – Josicleiton virara o rosto para desviar seus olhos dos de Vitor.
   – Ela não esperava por Wilker coisa nenhuma!
   – Esperava sim!
   – Pra que mentir?
   Outra vez Josicleiton se calou e virou o rosto. Findou-se o diálogo.

   Ao chegarem à padaria, todos dividiam os gastos: dois reais por cabeça. Comprariam pães doces; pequenos bolos baetas; leite achocolatado para uns, refrigerante para outros. Só um se impôs a pagar a taxa imposta pela turma:
   – Bora, Josicleiton! Poxa! – Tentara convencer Raposinha, o mais persuasivo dentre eles.
   – Tô sem dinheiro.
   – Mentira. Mentira que eu vi seu pai te dando uma nota de cinco! Fui eu quem te chamou na porta de casa. – Dissera Besinho.
   Josicleiton emudecera.
   – Vamos, todo mundo tá contribuindo. Desse jeito você fica sem lanchar! – Afirmara Coração.
   – Ouvi histórias da pirangagem desse aí, só faltava mesmo ver. – Murilo apontava energicamente, com raiva, em direção de Josicleiton.
   – Tá certo, eu pago, mas só tenho um real. O resto pago depois. – Expusera a seguinte alternativa.
   – Deixa disso e paga logo, oh! – Impacientara-se Peida Fogo.
   Nesse momento, ia passando algumas garotas. Dentre elas, podia-se ver Márcia (estavam na outra calçada, do outro lado da rua).
   – Josicleiton, sabe quem está ali – Vitor apontou em direção das meninas. – Se você não der o dinheiro, eu vou chamar!
   Os outros ignoravam o significado da ameaça. A expressão de Josicleiton era a mesma, inabalável, vazia.
   – Ô Márcia!!! Mááárrciiaaa!!!
   A garota olhou. Inocente, ia em direção dos meninos que a chamavam.
   Para surpresa de todos, Josicleiton cedeu.
   – Pronto! Pronto!!! Olha aqui o dinheiro, só não grite mais. – Entregara às pressas os dois reais.
   Márcia chegou e perguntou “O que foi?”. Vitor respondeu que Josicleiton queria falar com ela. Os meninos entenderam e os deixaram a sós. O encabulamento de Márcia se igualava ao de Josicleiton. De qualquer forma, o resto da tarde findara-se com uma empolgante conversa. Depois, ela disse que ficava escuro e tinha de voltar para casa; ele a acompanhou até a casa.

   Os sábados seguintes continuavam sem nada de extraordinário naquela cidadezinha pacata: Josicleiton corria atrás da bola na quadra de futsal; Márcia o assistia toda semana, a única diferença eram os encontros desses dois namorados todos os sábados, no mesmo banco da Praça da Liberdade.