quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Musa Adolescente






   A nova geração. Melhor: A geração de hoje – Ou melhor, que o melhor: A geração ‘do’ hoje. “Os jovens... O futuro... A copa... A justiça... Os jovens!”.
   Fala-se como se fossem parte um grupo homogêneo, igualitário. Leitores de Ruy Barbosa – e seguidores do exemplo de Joaquim Barbosa; estudantes assíduos, por natureza, sequiosos por conhecimento; defensores dos direitos humanos, da tão dita e repetida igualdade, fraternidade e liberdade...
“A esperança do amanhã está contida nas moças e rapazes de agora”.
   Bem sei que são diferentes. De hábitos, pensar, agir, andar, vestir. Uma infinidade de diferenças.
   Tiramos como exemplo Rafael. Físico regular; altura acima do considerado mediano. Encaixa-se na categoria dos magros-altos; visto que a magreza confere centímetros ilusórios a mais. Educado, comportado, prestativo e tímido. Ridiculamente tímido. Para descobrir a raiz dos modos desse ser, teríamos que viajar no tempo, na época em que brincava sozinho em seu quarto; sem ursinhos, para não afetar a alergia; sem objetos pontudos, em segurança do pequeno. Em espaços de vinte minutos sua mãe olhava o seu estado, assegurando-se que estava bem. Essas cenas passavam-se pela manhã; à tarde, ia para escola; desde sedo fora o saco de pancadas das classes – exatamente, das classes que passou até o ensino médio; à noite, assistia desenhos em canais educativos – na televisão monitorada pelos pais.
   Esse é Rafael. Encontramos esses em vários lugares, não estando só em escolas. Óculos de grau, eventualmente usam aparelho dental; camisetas discretas, listradas; tratam de temas diversos, desde ciência à economia política. Sempre à frente, até qualquer um lhe passar a perna.
   Passemos agora para a irmã de Rafael, Manuela. Numa ligeira olhadela: Fica-se sem encontrar traço algum de que são irmãos. Pouco mais cheia de corpo; quanto à altura encontramos uma diferença de quinze centímetros ou mais.   Desbocada, falastrona, preguiçosa e expansiva; garota de pouco pudor.
   Tivera a mesma educação do irmão, porém, ao chegar à fase da adolescência salientara e aprimorara seu ser estabanado. Seus pais pararam de censurá-la. Eles aceitaram a prole como ela é.
   Enquanto as amizades de Rafael foram rareando, Manuela tornava-se cada vez mais popular, cultivando amigos dos mais diferentes. Assim, esses dois díspares cresciam juntos sob o mesmo teto. E em paz, como Jerusalém dividida por judeus, cristãos e muçulmanos.

   Em uma tarde de domingo, Manuela esperava a visita de Vitória, amiga de escola. Marcaram para se encontrarem na casa desta, visto que Vitória morava poucas quadras dali, caminho do shopping ao qual iriam.
   Na casa, encontravam-se Rafael e irmã, seus pais saíram, foram para a academia (alternativa que encontraram em manter a forma e saúde duradoura). Nosso jovem encontrava-se na sala de estar. Sentado. Lendo Manuscritos Filosófico-Sociológicos de Karl Marx, no sofá. A campainha tocou. Era Vitória.
   – Só um minuto. – Rafael fora abrir a porta.
   – Oi, a Manuela... - Vitória mal formulara a frase; interrompida por Rafael.
   – Ela já vem: Está só se arrumando.
   – Certo.
   Rafael conduzira a garota até a sala, de lá gritou para um corredor:
   – Vitória tá aqui, te apressa!
   Uma voz respondeu:
   – Estou indo, estou indo!
   Estamos sem a descrição de Vitória. Aos olhos de Rafael (era a primeira vez que vira essa garota) ela estaria entre um metro e sessenta e sessenta e dois; cabelos escuros, finos, cortados em camadas; pele alva; devia ter a idade de sua irmã, dezesseis anos. Vestia uma camiseta de rosa, multicolorida tendo o rosa como base, e shorts jeans curto.
   Dito isso, ele acenou com a cabeça num gesto de quem quer dizer “Sem demora; já, já ela tá pronta para sair com você”. Sentou-se novamente, na mesma posição. Vitória ficou em pé. Havia dois sofás e uma poltrona a sua frente, contudo, preferiu ficar de pé. Notou que o “já, já” sugerido não se concretizara. Sentou-se, ao lado de Rafael.
     Nesse ponto da narração, nosso menino começou a questionar-se intimamente.
    A partir de agora, nenhuma palavra será trocada. Vale lembrar esse pormenor importantíssimo na compreensão do texto.
   Rafael conservara-se de cabeça baixa. Fixa no livro; atento à leitura. Daquele ângulo sua visão era limitada a poucas coisas. Olhemos com ele: Além das letras no papel; o chão, obviamente; as pernas – não eram as dele que via; uma bolsa marrom (sóbria para uma adolescente).
   As pernas eram longas. Nunca estivera perto de pernas tão nuas como naquele instante. Bem torneadas também. Pareciam ser macias. Pernas sem fim ou início.
    Dado momento a bolsa marrom alarmava: Era o celular. Pusera uma mão afilada dentro da bolsa e arrancara o aparelho telefone.
     – Alô? Oi. – Atendera Vitória.
 – Então, comprasse?...  Ainda vai comprar?... Lá no centro... Mais tarde, talvez... Tá joia, beijo.
   Monologara sem pressa; poucas palavras trocadas sem o menor sentido aparente.
“Com quem será que ela falava? Será o namorado” Pensava o menino.
   Rafael permanecia cabisbaixo. Vitória notara a atenção que seu colega empenhava na leitura e começou a olhar, estuda-lo. Sentimos quando somos observados; esteja ele há metros de distância, bem atrás de nós, mas a sensação prevalece. Simplesmente sabemos. Rafael ficara nervoso.
   “Afinal, por que ela está me olhando”.
   Vitória abaixou um pouco a cabeça só para ver como estava a expressão facial do irmão de Manuela. O garoto Enrubescera. Sem motivo aparente, parecia evitar a todo custo contato visual. Cansara-se, enfim, Vitória de olhar Rafael. O alívio tomou conta do corpo de nosso ‘herói’.
   Voltamos à descrição dos olhos de Rafael: “A perna esquerda encostou-me duas vezes; seu braço esbarrou no meu braço três vezes; braços finos, mãos igualmente finas; ela não para de mexer nos cabelos, a todo instante uma nova posição (deve estar impaciente); a perna voltou me tocar, permanecem juntas; sua perna é quente.”.
   Ficar eternamente calado, sem nem olha-la nos olhos, há humilhação maior? Mesmo um rapaz como Rafael sabia que era personagem ridículo; atingira o âmago da infantilidade portando-se daquela maneira. Já nem sabia o que lia, pois ele estava absorto em pensamentos. Por que em uma sala, com tantos diferentes assentos, ela escolheu justamente esse?
   Decidiu-se, enfim, agir normalmente. Conversar com Vitória enquanto sua irmã não chegava.
   No momento em que erguera a cabeça, Rafael sentira-se mais tolo ainda. Vitória dormia bem ao seu lado.
   A garota parecia estar repousando um sono leve, como quem está prestes a se despertar. Parecia tão frágil aos olhos de Rafael. Olhos levemente cerrados; seu peito subia e baixava à medida que respirava; os cabelos, irrequietos antes, agora estáticos sob o couro do sofá.
   Que quadro incrível, maravilhoso. Tão frágil, tão pura, tão angelical. Alguma vez Rafael vira uma garota bonita como essa? Impossível. Seus olhos soltavam faíscas.
   Nem um movimento. Vitória poderia ser uma estátua. Para ter certeza que se tratava de uma menina de carne e osso, Rafael se aproximou mais um pouco. Poderia sentir o calor que Vitória emanava. De repente, seu narizinho se mexera, contraíra-se rapidamente. Nesse ponto, nosso herói pensou que acordara Vitória, mas ela permanecia dormindo.
   “Vou beijá-la!”. Decidira Rafael; súbita resolução.
   Chance igual ou parecida a essa não surgiria tão cedo, ou melhor, nunca teria outra chance.
   Então, pouco a pouco foi aproximando sua cabeça da dela até que seus lábios se encontrarem. Lenta e cautelosamente.
   – Estou pronta! – Alertara Manuela, sem notar que seu irmão estava a meio palmo de distância da boca de sua amiga.
   Com toda a demora, Manuela decidira usar um velho vestido branco, quadriculado em tons que variavam entre rosa e pêssego; sapatos scarpin azul; cabelos presos e pouca maquiagem, basicamente: leve e sóbrio. A simplicidade agora fazia todo sentido, visto que Manuela apostara num diferente estilo, o que explicava a demora.
   O grito (sim, podemos tomar por grito) que Manuela soltara despertou Vitória. Na posição em que Rafael estava, musa e contemplador coraram. De súbito, Rafael voltara a posição primitiva e Vitória saltara do sofá.
   Sem entender o que se passava ali, indagou Manuela:
   – Bem, vamos agora?
   – Vamos! – Respondeu rapidamente Vitória.
   – Tchau... – Despedira-se timidamente Rafael.
   – Tchau. – Replicara Vitória, para surpresa do interlocutor.
   Ficou, assim, Rafael sozinho em casa. Jogou o livro para um canto. “Estive tão perto”. Contrariado consigo, naquela tarde só resmungou e projetou possibilidades absurdas.
   Vitória voltou pra casa mais cedo que o esperado, pois Manuela viu que sua amiga parecia distraída, no mundo-da-lua. Perguntou se Vitória estava doente, esta demorou meio minuto procurando as palavras certas. Manuela tocou na fronte de Vitória e percebeu que ela estava ardendo de febre. Acompanhou a amiga até chegar em casa.
   Três dias de febre. Os pais da menina procuraram o motivo, uma forma de elucidar a causa da febre. Nunca desconfiaram que o sofrimento fosse de caráter emocional. Pudera, Vitória era apaixonada por Rafael. Fizera toda aquela cena para despertar desejo no imutável rapaz. Não obtivera êxito. E pensar que estiveram tão perto de um beijo...

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